A economista Lorrayne Porciuncula, em entrevista à Conexis News, fala de carga tributária sobre telecom, conectividade e sobre como o país está evoluindo nas recomendações da OCDE
CN – A OCDE divulgou no ano passado o estudo “Avaliação da OCDE sobre Telecomunicações e Radiodifusão no Brasil 2020”, que teve sua participação na elaboração. O que evoluiu desde então e o que ainda se coloca como desafio?
LP – Nos últimos 20 anos, o Brasil passou por um processo de fortalecimento do seu marco legal e amadurecimento do seu quadro regulatório do setor, principalmente em relação a políticas de telecomunicação e Internet. Ao mesmo tempo que houve uma profissionalização de agências reguladoras, tais como a Anatel e o Cade, e organismos multissetoriais, tal como o CGI.br, o Brasil, assim como o resto do mundo, também passa por um momento de autorreflexão dados os desenvolvimentos tecnológicos no setor. A revisão da OCDE, posto que é voluntária, é em si mesma uma das consequências deste momento.
A OCDE elaborou 34 recomendações para os setores de telecomunicações e radiodifusão, agrupadas em torno de cinco ações-chave: adaptação do marco legal a um ambiente convergente, reforma da estrutura tributária, melhoria das condições de mercado, promoção de competição e fortalecimento das políticas nacionais baseadas em evidência. O estudo reconhece os pontos fortes, mas também avalia firmemente as vulnerabilidades, oferecendo um mapa de percurso para avanços – pontuais e sistêmicos.
Desde a publicação do estudo da OCDE, alguns avanços foram feitos, tais como a aprovação da nova lei do FUST, a criação do GT do SeAC, além de todo os esforços do MCom para promover conectividade e da Anatel pela simplificação regulatória, regulação responsiva, pela ampla coleta e disseminação de dados em relação à conectividade no Brasil (principalmente no que diz respeito a provedoras de pequeno porte). No entanto, ainda há muito a ser feito.
A coordenação em torno da implementação das recomendações está a cargo do MCom, buscando se alinhar com a Casa Civil, que monitora a implementação de recomendações da OCDE em outros setores (transformação digital, governo digital, etc), assim como demais Ministérios, agências e atores implicados.
Sublinho aqui a importância sobre coordenação e avaliação sistêmica deste processo. Dentre as recomendações da OCDE, a questão da elaboração de um marco convergente foi colocada como fundamental. Repensar o marco de todo um setor nesta escala é tanto urgente quanto complexo. Exige clareza em quais são os objetivos de política pública que o Brasil quer alcançar. Começando pelas metas e depois traçando um plano coerente para chegar lá, ao contrário de um caminho menos custoso de promoção de reformas estéticas em cima do que já é uma colcha de retalhos, principalmente no que toca a questão tributária e a revisão do arcabouço legal do setor de comunicações como um todo, de forma a incluir além de TV por assinatura, radiodifusão e serviços over-the-top.
CN – Em live recente da Conexis, com sua participação, você mencionou que no caso das telecomunicações o elefante na sala é a questão tributária, lembrando que a banda larga brasileira é a mais tributada do mundo, e revelou que a carga tributária brasileira é tão complexa que exigiu um capítulo inteiro no estudo da OCDE. Essa complexidade é um obstáculo para o país nesse caminho para a era digital? A redução dos tributos sobre telecomunicações é urgente?
LP – Nessa questão, as recomendações da OCDE são claras e firmes em chamar por uma redução e simplificação de tributos ao setor. No curto prazo, a OCDE recomenda ações em três frentes: harmonização entre estados e redução do ICMS para serviços de comunicação; integração e uso eficaz dos fundos setoriais de forma a contribuir para a transformação digital e não para cobrir o déficit orçamentário da União; e promoção da entrada dos países do Mercosul do Acordo da OMC sobre Tecnologia da Informação para reduzir tarifas de importação sobre determinados bens de capital e tecnologias da informação e comunicação.
No longo prazo, a OCDE recomenda reformas ainda mais ambiciosas, mas igualmente necessárias. A primeira, é uma reforma profunda na estrutura de impostos indiretos no Brasil. A proposta é a de consolidar os impostos sobre consumo nos âmbitos estadual e federal em um imposto de valor adicionado com uma ampla base e restituição integral de valor adicionado pago na forma de insumos. Tal reforma abriria caminho para a abolição de fundos setoriais como um todo. Esta recomendação não significa de forma alguma que a OCDE propõe a abolição de investimento público no setor. O que diz a OCDE é que o financiamento – que deve sim garantir, de forma sustentável e previsível, a atuação de agências reguladoras, assim como a promoção de políticas públicas de expansão de conectividade de qualidade para todos e de fomento a conteúdo local – deveria preferencialmente vir da contribuição geral de tributos e não de encargos setoriais específicos.
Hoje, o elefante na sala é de fato o alto nível de taxas e tributos que exerce um impacto severo sobre o setor de comunicações no Brasil. As altas taxas contribuem para o custo total de serviços de comunicação, comprometendo o potencial do setor para a inovação e o investimento e prejudicando a adoção de serviços. Uma reforma é urgente porque o setor de comunicações é crucial para a economia de qualquer país hoje, com repercussões positivas sobre a produtividade e, consequentemente, sobre o crescimento e o desenvolvimento. Por isso, o setor não deve estar sujeito a ônus desnecessários e prejudiciais não só ao próprio setor, como à transformação digital no Brasil como um todo.
CN – Sabemos que a conectividade é essencial para o desenvolvimento da economia e para o aumento da produtividade. O que segura esse desenvolvimento do Brasil e não deixa o país decolar?
LP – O Brasil testemunhou a expansão de conectividade de forma progressiva nos últimos anos. Essa tendência é vista de forma ainda mais acelerada no caso da banda larga móvel. De 2012 a junho de 2021, a assinaturas de banda larga móvel quase que quadriplicaram, passando de 59 milhões para 215 milhões. No entanto, lacunas de conectividade ainda existem principalmente em relação a banda fixa. Em dezembro de 2020, a penetração de banda larga fixa no Brasil era de 17 por 100 habitantes, enquanto que a média entre os países da OCDE era de 33 por 100 habitantes.
Além disso, disparidades regionais persistem, tanto em relação ao acesso quanto à qualidade de serviços. É evidente que a geografia Brasileira apresenta desafio não negligenciável para a transformação digital inclusiva. O Brasil tem um território de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, que equivale aproximadamente a oito vezes o território da França e da Espanha somadas. Além disso, uma parte substantiva da população está esparsamente distribuída fora de centros urbanos e em áreas rurais ou remotas.
No entanto, na minha opinião, essas não são as principais razões que impedem o Brasil de decolar e aproveitar as oportunidades trazidas pela transformação digital. O grande empecilho é não colocar a transformação digital como prioridade para o projeto de futuro para o país. A questão de geografia é fato imposto. O que o Brasil pode e deve fazer é colocar como central na pauta política a questão da conectividade de qualidade (ou significativa), conforme pontua a Alliance for Affordable Internet (https://a4ai.org/meaningful-connectivity/). É fazer dessa uma causa primeira e basilar para o alcance de outros objetivos de política pública fundamentais – de redução de desigualdades socioeconômicas, de participação política inclusiva, de educação de qualidade, de saúde para todos e de proteção ambiental.
CN – Atualmente você é Diretora Executiva do “Datasphere Initiative”, incubado pelo Internet and Jurisdiction Policy Network. Como se relaciona a questão dos dados com políticas públicas para o setor e para a transformação digital?
LP – Os dados impactam todas as áreas de política pública, setores econômicos e, cada vez, mais dimensões da vida. No entanto, as discussões sobre políticas em torno de dados acontecem com muita frequência de maneira compartimentada. Esse é um ponto que abordamos em um recente relatório de minha coautoria chamado “Precisamos falar sobre dados” (We Need To Talk About Data, em inglês). Na questão dos dados também é fundamental pensar do ponto de vista da convergência digital e estabelecer uma discussão e implementação de medidas que se forma coordenada – e de maneira multissetorial e multidisciplinar.
Desta forma, a Datasphere Initiative nasce do entendimento de que a maneira como governaremos a Dataesfera determinará o futuro da nossa sociedade e da nossa capacidade de lidar com grandes desafios globais – desde a pandemia à mudança climática. Acreditamos que essa jornada em que tantos países se encontram atualmente exige necessariamente o desenvolvimento de abordagens ousadas e inovadoras de como os modelos de governança de dados (tanto pessoais quanto não-pessoais) são concebidos e implementados. A nossa missão é promover uma Dataesfera que promova confiança, prosperidade, sustentabilidade e bem-estar para todos.
Isso tem tudo a ver com discussões nacionais e globais de como promover a transformação digital. Sem que saibamos onde queremos chegar, ou seja, reunindo as partes interessadas e forjando uma visão positiva de como o futuro de nossa sociedade digital pode ser – jamais poderemos fazer com que isso se torne realidade.
Lorrayne Porciuncula é Diretora Executiva do Datasphere Initiative, incubado pelo Internet & Jurisdiction Policy Network. Entre 2014-2020, atuou como economista na OCDE, liderando a produção de vários relatórios técnicos e estudos regionais e nacionais, tais como a avaliação de políticas e regulação de telecomunicações e radiodifusão no Brasil, publicada em outubro de 2020. Anteriormente, Lorrayne trabalhou como economista na União Internacional de Telecomunicações (UIT), em Genebra. Lorrayne é afiliada ao Centro Berkman Klein para Internet e Sociedade da Universidade de Harvard. É mestre em Economia para o Desenvolvimento pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais e para o Desenvolvimento (IHEID), na Suíça, e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB).