Os usuários da internet mudaram muito nos últimos 25 anos, e o momento é de definir novas regras para incentivar o ecossistema digital e, ao mesmo tempo, salvaguardar o direito dos consumidores.
Brasília, 13/09/23 – A redução das desigualdades no acesso à internet é uma questão-chave que precisa ser endereçada porque representa também a possibilidade de acessar outros direitos e exercer a cidadania, pontuou Renata Mielli, coordenadora do CGI.Brasil, ao iniciar o painel Construindo um futuro conectado de forma equilibrada: Do “fair share” às redes do futuro, durante o Painel Telebrasil Summit 2023, nesta quarta-feira (13), em Brasília. Como mediadora, Renata Mielli assinalou que o debate englobaria também a regulação do ambiente e das plataformas digitais.
“A época da internet romântica acabou. Eestamos na época do positivismo, vendo a internet como ela é, e a pergunta é se temos os instrumentos para regular os fatos. A resposta é: não. Por isso é importante que existam regulação/leis que apontem para estes gaps”, disse Mário Girasole, vice-presidente de Assuntos Institucionais e Regulatórios da TIM Brasil. O executivo ressaltou que os usuários da rede mudaram profundamente ao longo dos últimos 25 anos, o que deve levar a uma nova interpretação das regras e do ecossistema.
A União Europeia já passou pelo debate que resultou na aprovação de um pacote de regras e leis para o setor digital. Maria Buzdugan, conselheira para Economia, Indústria e Transformação Digital da União Europeia no Brasil, destacou que não foi fácil aprovar as leis. “Temos debate similar no Congresso brasileiro e vemos um tremendo lobby. Tivemos o mesmo na União Europeia e acho que a pressão dos cidadãos e dos pequenos negócios foi ainda maior que o lobby [das big techs]”, destacou Buzdugan.
A executiva defendeu que a regulamentação é muito necessária, porque, do contrário, o poder das grandes plataformas seria danoso para os pequenos negócios. “Se podemos provar algo, é que implantamos a lei e ninguém morreu”, enfatizou, passando a mensagem de que é possível salvaguardar o direito dos usuários.
No Brasil, o projeto de lei PL 2768/2022 do deputado federal João Maia (PL/RN) atribui à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) o poder de regular o funcionamento e a operação das plataformas digitais que atuam no Brasil. O texto cria ainda uma taxa a ser paga pelas grandes empresas do setor.
Ao comentar a iniciativa, Maia defendeu que não dá para as big techs terem poder de mercado, sem uma regulamentação. “Nas privatizações, criamos as agências reguladoras com autonomia, mas, na época em que isso foi feito, telecom era uma coisa e hoje é outra. A Anatel tem experiência, vivência e competência. Tenho medo de criar órgãos acessórios; é mais fácil, barato e eficiente criar uma diretoria na Anatel para acompanhar este processo do que criar um órgão novo”, argumentou.
Mas a Anatel está preparada para regular SVA [Serviço de Valor Adicionado]?, questionou a coordenadora do CGI.Brasil, Renata Mielli. “Sabemos que há uma polêmica grande com relação a conferir isso para a Anatel. No PL do João Maia, é uma atribuição mais econômica, mas temos o PL 2630 que impacta a regulação de conteúdo, o que é estranho à natureza do debate da Anatel”, disse.
O conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações Alexandre Freire defendeu que, sim, a Anatel está preparada para esses novos desafios. “Ela não exerce mais o papel que foi pensado para ela há 26 anos; ela tem outras atribuições e competências, inclusive, regular plataformas digitais, IA e segurança cibernética. É uma agenda diversa da que foi pensada há 26 anos.”
Freire enfatizou ainda que há espaço dentro da Anatel para uma remodelagem diferente para permitir uma representação multissetorial. “Dentro da estrutura da Anatel podemos desenvolver uma superintendência para ter competências para os desafios do mundo virtualizado. E, assumindo este papel, tem de repensar a forma como desenvolver uma nova política para a nova missão que foi desenhada”, afirmou.
Já o advogado e professor Floriano de Azevedo Marques Neto discordou. “Não acho que só uma diretoria da Anatel resolveria o problema, porque a Anatel foi concebida para regular redes”, afirmou. De acordo com o professor, seria preciso reconfigurar o escopo e estrutura da Anatel para tratar o conteúdo, mas isso passa por inserir na regulamentação de telecom questões complexas que, no passado, foram deixadas para fora. “Não acho que seria interessante para a Anatel entrar na regulamentação de conteúdo”, frisou.
Para ele, trata-se de um tema que tem de ser enfrentado sob algumas óticas. “A primeira questão que temos de colocar é que a regulação não tem escopo de coibir falhas de mercado; ela faz isso através de enfoque regulatório. Esta é a única indústria de redes que o detentor das redes não explora o conteúdo; o setor de telecom tem esta peculiaridade”, enfatizou.
Fair share
O painel também debateu como remunerar a infraestrutura de telecom no Brasil. Maria Buzdugan contou que a União Europeia está hoje em uma fase parecida com a brasileira. “Talvez um passo à frente, porque já lançamos a consulta pública sobre como financiar a rede de conectividade. A intenção política está lá e há um esforço dedicado”, disse, explicando que os dados obtidos via consulta pública serão analisados para se conseguir traçar um caminho a percorrer.
Mário Girasole, da TIM, afirmou que o tema do conteúdo e infraestrutura são ortogonais. “A rede de telecom não é um tubo passivo, porque é uma rede cuja inteligência consegue sempre mais. Nos últimos dois, três anos, o tráfego triplicou e o operador de telecom não tem recursos infinitos; ele tem de escolher entre incrementar capacidade de rede na Zona Sul do Rio, por exemplo, ou entrar com 5G em localidades mais periféricas do país”, ponderou, frisando que não é possível fazer as duas coisas. “A política precisa entrar nisso, porque, hoje, não temos recursos para fazer as duas coisas e temos de escolher. É legítimo cobrar de quem usa a rede para monetizar”, argumentou.
O deputado João Maia acrescentou que o PL 2768 é aberto. “Precisamos discutir isso, porque, se vamos regular, temos de reestruturar a Anatel e concordo que não é entrar em conteúdo. A ideia da gente é ver o que se produz com as audiências públicas para, em cima desse arcabouço, começar a caminhar. Nosso projeto é provocativo, porque achamos que teríamos que provocar a discussão”, explicou.
Para Maia, o modelo atual é insustentável. “Não podemos ter taxa de retorno do produtor de conteúdo que seja várias vezes maior que o da infraestrutura física, porque, se a infraestrutura física não anda, uma hora não vamos mais ter”, apontou. Da parte da Anatel, Alexandre Freire explicou que a agência, recentemente, abriu uma consulta para tomada de subsídios para pensar a respeito do tema. “Temos um longo caminho a percorrer. O que me parece importante é pensar na narrativa que tem de construir em torno da questão de net fee, fair share e neutralidade de rede”, disse.
O tema tem de ser enfrentado no Congresso, ressaltou Floriano de Azevedo Marques Neto, já adiantando: “não gosto de falar em fair share, porque, no capitalismo, não tem fair share”. A questão, disse, é própria do sistema econômico e é preciso avaliar bem os pontos e entes envolvidos. “A telemedicina vai usar muita rede; ela vai entrar no fair share? A telemedicina consome muita banda, mas é uma atividade essencial”, completou.
Foto: Vitor Brandão – Estúdio Versailles/Telebrasil